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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

AS DORES DE BARRIGA, A ADRENALINA E UM RALI MEMORÁVEL

fotografia Nuno Dinis

Vai-me ficar na memória pelos melhores motivos este Rali de Cantanhede – Marquês de Marialva 2024, mas começo esta história a dizer-vos que foram terríveis as dores de barriga e os suores frios que os últimos momentos da prova me provocaram. E não… não foi Covid! Vocês nem imaginam o nervoso graudínho que foi fazer as contas nos 2 ou 3 últimos controlos do rali, a saber que o resultado final dependia tudo de eu não me enganar numa simples soma de minutos. E somei… somei umas 20 vezes, e confirmei, e verifiquei também pelos horários de outros navegadores para confirmar que confirmei bem!


O Rali de Cantanhede foi a terceira prova que fiz no Fiesta R5 em 4 ralis que disputei com o André e desta vez posso mesmo afirmar que “à terceira foi de vez” pois finalmente, aquela pontinha de sorte que nos vinha a falhar esteve connosco e finalmente pudemos saborear o doce sabor da vitória.

O modus operandi do André mantem-se o mesmo que eu sempre conheci: um plano de trabalho traçado a pensar nos detalhes, disciplinado, eficiente, exigente para connosco mesmos desde o primeiro metro de reconhecimentos, e obviamente que isso me traz ensinamentos, sobretudo o ensinamento de não facilitar por relaxe, por descuido. Se é para se fazer, que se faça bem feito. E se não der certo, pelo menos que não seja por nos termos deixado levar pelo desleixe.

Pois bem, assim foram os reconhecimentos deste rali que primou para mim por duas características muito próprias: a rapidez das estradas que acolheram a competição, e em consequência, o extremo desafio que foi navegar naquele terreno tornando tudo mais aliciante.

fotografia David Almeida

O rali começou com duas passagens pelo troço de Murtede e desde logo o André aproveitou tudo o que havia de estrada, espremeu tudo o que o Fiesta tinha para dar e isso deu frutos óbvios no cronómetro, mostrando-nos que era realisticamente possível sonhar com um bom resultado (o melhor de todos).

Da minha parte posso-vos garantir que o ritmo imposto ao longo daqueles quase 10 quilómetros me deu um gozo fenomenal no “ditar notas” e no sentir o que é um R5 a respirar saúde, tão bem comandado pelo “capitão da nave” André Cabeças e nem mesmo um pequeníssimo exagero (quando íamos “cravados de 4ª”) beliscou o quanto ambos desfrutamos a bordo do Ford.

A dose repetiu-se na segunda passagem por este espetacular troço e quando digo que se repetiu, foi literalmente isso pois igualamos à décima o tempo que tínhamos feito na primeira passagem. Ritmo diabólico, pilotagem eximia, a correr muito próximo do limite pois numa máquina destas, se não for assim nem tem piada.

E com isto tudo liderávamos o rali, antes da Super Especial noturna presenciada por uma incrível moldura humana. Honestamente não esperava ver tanta gente ali a assistir ao espetáculo. Superou as minhas expectativas. 


E perante um cenário daqueles, que mais haveria a fazer..? Dar espetáculo! E aqui o André não se fez de rogado e “deu tudo” para aquele público incrível que nunca se cansou de aplaudir, de incentivar, de mostrar o seu apoio. Mesmo assim o resultado final na tabela de tempos foi-nos favorável, terminamos a etapa na frente da prova, mas mais importante que isso era sentir que as coisas agora estavam como deviam estar, o carro a funcionar na perfeição, o nosso “trabalho de casa” a resultar e não menos importante, os nossos homens dos bastidores a não precisarem desta vez de fazer “horas extra”.

Mas a maior fatia do bolo servia-se no dia seguinte com 6 provas especiais de classificação, entre as quais, a minha preferida – Olhos de Fervença – um troço delicioso, com uma geometria mais apropriada para as características do Fiesta, com zonas muito rápidas a alternar com zonas bastante mais técnicas e a obrigar a uma concentração enorme para não comprometer em nada o rali.

Motivados pela espetacular primeira etapa que tínhamos conseguido, arrancamos para este segundo dia dentro da mesma filosofia: desfrutar, andar rápido, não cometer erros.


Na primeira classificativa do dia voltamos a impor o ritmo alargando um pouco mais a vantagem, numa altura em que as condições meteorológicas começavam a querer “meter-se na conversa”, um ingrediente extra que poderia vir complicar a vida a toda a gente caso viesse a chuva.

O troço seguinte, com zonas brutalmente rápidas e de bom piso, não era tão apropriado para as capacidades do Ford mas tentamos ao máximo minimizar as perdas salvaguardando sobretudo a mecânica. Era importante não cometer erros ou exageros, não relaxar e segurar a vantagem de tempo que já tínhamos amealhado. Assim o fizemos, embora num ou noutro ponto propício ao espetáculo, uma vez mais o meu bravo piloto não deixou créditos por mãos alheias e fez ali umas passagens “à mundial”. Se do lado de dentro foi bonito, quem viu por fora certamente viu um excelente show.

Entretanto com o céu cada vez mais carregado e com os primeiros pingos de chuva a aparecerem, era altura de “mudar o chip” do ataque para a defesa. A nossa margem era razoável, dava-nos algum conforto e a partir dali era importante começar também a gerir um pouco.


Ainda assim, em Olhos de Fervença 2 voltamos a registar o melhor tempo, sendo esse definitivamente o ponto de viragem para passarmos ao modo de gestão na secção da tarde.

Sem qualquer problema no carro, com a confiança em alta e com tudo a resultar em pleno, agora o importante era mesmo “não adormecer”. Quando se relaxa acontecem erros, e isso nenhum de nós queria. Totalmente focados percorremos os derradeiros quilómetros de prova sem sobressalto, com o André a aproveitar alguns locais para bonitas atravessadelas de forma a agradecer ao muito público presente todo o apoio que nos deu.

fotografia David Almeida

Estava assim finalizada a parte competitiva do rali, teoricamente tínhamos a vitória nas mãos e é nessa fase que começam os meus suores frios, o nervoso miudinho, as dores de barriga. A tarefa era muito simples: levar o carro até ao parque fechado sem falhar um controlo. Mas parecia tudo tão mais complicado quando se trata de vencer um rali e está nas minhas mãos a tarefa de o materializar.

A tentação de cair na euforia e nos festejos era grande mas… lá está, quando se relaxa é quando dá asneira. “Festejamos no pódio”, palavras sábias do André nesta altura, com as quais eu concordei. E nada falhou. E não errei nas contas. E não nos perdemos na ligação. E vencemos!! A vigésima vitória do André e a minha primeira vitória à geral, passados 11 anos desde aquela brincadeira que me levou às lides da navegação e que me abriu todo um novo mundo e me fez nascer uma grande paixão pela arte.

Agora, passadas umas poucas horas desde o final deste rali, acho que ainda não consegui descer à terra e perceber o que aconteceu. Sim, ganhamos, e ganhamos bem (7 vitórias em 9 troços possíveis!) … mas o que mais me ocupa a mente foram todos aqueles momentos de pura adrenalina a bordo de um imaculado Ford Fiesta R5 espremido ao máximo pelo meu piloto que, provavelmente tirou deste rali o mesmo nível de satisfação e de gozo que eu tirei.


Recordo já em “modo ressaca” o som, o poder de aceleração, a estupidamente eficaz capacidade de curvar, o ritmo de debitar notas a um piloto que ouve e absorve aquela informação instantânea como se fosse a única forma de “ver” a estrada, o poder de travagem do carro (inacreditável mesmo!!), e todo aquele frenesim próprio de um rali, desta vez para mim com a particularidade de ser o primeiro concorrente na estrada ao longo de toda a segunda etapa, fazendo-me sentir como nunca que toda aquela gente estava ali à nossa espera, que éramos o centro das atenções, que seríamos nós a “abrir as hostilidades”. Recordo-me bem dos tempos em que ia ver ralis de máquina fotográfica às costas e ficava ali à espera do primeiro carro com aquela ansiedade saudável… agora era eu do lado de dentro e via as pessoas à nossa chegada com aquele ar de satisfação como que a dizerem “vai começar!”.


E recordo-me obviamente dos “ganchos à mundial”, das “varridelas” nas rotundas, das pessoas a acenar nas ligações e a aplaudir, sobretudo os mais pequenitos que vibravam com o rali da mesma forma que eu quando era daquelas idades… é impossível não sentir emoção ao recordar estes momentos, tal como foi impossível conter uma lagrimazita quando o Fiesta entrou em parque fechado confirmando a vitória, a minha primeira vitória. Nesse instante lembrei-me do meu primeiro rali e pensei “como raios vim aqui parar…?” Ainda parece surreal, mas depois vejo as muitas mensagens, comentários nas redes sociais, chamadas telefónicas, tudo para parabenizar a equipa e constato que afinal aquilo aconteceu mesmo.

Peço-vos desculpa se esta crónica não foi tão divertida de ler ou se não vos “transportou” para dentro da corrida de maneira tão eficaz, mas sinto-me sem palavras e ainda a tentar assimilar a experiencia – correr num R5 não é todos o dias e isso marca!

Ao André Cabeças, dou os meus parabéns pela 20ª vitória da carreira e sobretudo pelo talento que o homem revela ao volante. E obviamente que nunca é demais agradecer-lhe por ter-me confiado a missão de o navegar uma vez mais, proporcionando-me momentos e sensações únicas que só nos ralis são possíveis.


Quero também dar os parabéns ao Paulo e ao Dércio Carvalheiro bem como ao António e à Ana Monteiro pelas espetaculares provas que também eles fizeram, tal como a fizeram o Jorge Santos e o Vitor Hugo, muito bons adversários mas ainda melhores camaradas. Mereciam um pouquinho mais de sorte mas acredito que aquela máquina fabulosa lhes vai dar muitas alegrias no futuro.

A todo o staff da Pardal Sport um muito obrigado pelo trabalho desenvolvido, profissionalismo ao mais alto nível sem duvida, e uma vez mais também obrigado pela forma como me acolheram na “vossa casa”.

A Cantanhede, às suas gentes, às suas mais altas entidades, responsáveis por fazer acontecer este rali, tal como ao Clube Automóvel do Centro, uma palavra de apreço pela forma como receberam a caravana do rali, foi um evento espetacular!

E porque isto não é a cerimônia dos Oscares, vou parar com os agradecimentos e vou ver pela enésima vez as imagens do Fiesta a voar baixinho porque aquilo vicia mesmo.

Até breve, bons ralis!


5 comentários:

  1. Mas que cronica linda , emocionante, pura e sim é real :) Parabens

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  2. Esta superou o tio Hercas éeee :D

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  3. A tua escrita faz-me bem ao cérebro e transporta-me para o interior do Fiesta. Quanto à prova em si, imagino a vossa adrenalina durante a mesma e aquele sentimento que a poderiam ganhar à medida que se sucediam os troços. O Fiesta, portou-se bem, a equipa de assistência foi top e a dupla de pilotos foi eficaz e soube retribuir o carinho do público.
    Todos de parabéns.
    E.T. Aquela do "nervoso graudinho" é muito boa!!!

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