Tenho pensado imenso sobre o assunto e como descrever de
forma prática e eficaz a minha mais recente “saída”. Falo do Rali de Vieira do
Minho, um rali disputado numa das mais belas zonas do país para a prática da
modalidade, e que pelo segundo ano consecutivo foi alvo das piadinhas do São
Pedro.
Tentarei levar-vos para dentro da corrida, da mesma forma
que a vivi.
Acho que é merecido e devo destacar antes de mais nada, todo
o trabalho desenvolvido pelo Motor Clube de Guimarães e pelo Município de
Vieira do Minho que, perante tantas adversidades climatéricas, nunca baixaram
os braços e levaram a prova avante. O meu sincero reconhecimento e um
agradecimento publico aos envolvidos nesta organização, dos quais destaco as
pessoas que no terreno sofreram na pele a brutal intempérie de chuva, vento,
neve, frio (muito frio), lama e chuva…. E lama! (já tinha dito chuva e lama, mas
ela foi mesmo tanta que vale a pena reforçar).
Este Rali de Vieira do Minho estava nos meus planos.
Tencionava deslocar-me aos espetaculares troços da Cabreira, de Canon às
costas, para tentar “bater umas chapas” aos bravos que responderam à chamada da
prova, debaixo do sol de um belo dia de primavera. Tencionava… digo bem!
Toca o telefone e num ápice os meus planos mudam: havia um
piloto inscrito que precisava de navegador e o meu nome foi sugerido para a
ocasião. Ok, e porque não..? E um rali interessante, feito por pessoas que
gostam de automóveis e vou gostar de lá estar. E se puder ajudar “o rapaz”,
tanto melhor.
“O rapaz”, de seu nome Telmo Costa, era um perfeito
desconhecido para mim e como tal não sabia muito bem com o que contar para este
rali. Também desconhecido era o carro a utilizar, um Citroen Saxo, cujo
potencial para mim era uma incógnita, e por isso, a nível de resultados, o que
viesse à rede era peixe, desde que a gente se divertisse.
Menos incógnita era aquilo que iriamos ter durante a prova:
dias de verdadeira tormenta (eu falei em primavera..?), muita chuva, previsão
de queda de neve, e troços desenhados em pisos de terra bem no meio da serra,
condições portanto ideais para termos um rali quase ao estilo “extreme”.
Dia de reconhecimentos, bem chuvoso para não fugir à média.
Conheço finalmente aquele que iria ser o meu “chofer” para os dias seguintes e
lá fomos em direção ao “Nascente do Ave”, um troço lindíssimo e que, em dias de
sol, deve dar um gozo fenomenal de fazer em carro de ralis (com chuva também,
mas já lá vamos).
Apesar da sua ainda pouca experiência na arte de tirar
notas, o “homem da rosca” dá bem conta do recado. Sem inventar, vai descrevendo
as curvas a ritmo moderado para não deixar escapar os detalhes e eis que
aparecem as primeiras dificuldades.
A segunda metade deste troço apresenta um piso mais “barrento”,
muito mais enlameado e muito mais problemático. Mesmo devagarinho notava-se bem
o escorregar do nosso veículo e a muita lama e água presentes complicavam a
progressão e de que maneira. Mas conseguimos, terminamos o troço e seguimos
caminho em direção ao seguinte, só que… os ruídos nada normais que vinham da
mecânica do nosso carro de reconhecimentos deixavam adivinhar problemas,
problemas esses que não se fizeram tardar. Uma transmissão “a cantar”
demasiado, desafinou a cantoria e o carro teve de encostar. Este era um grande
problema para a nossa ordem de trabalhos, já que apenas tínhamos aquele dia
para tirar notas e confirmar, e esta avaria ia-nos atrasar bastante. E atrasou!
O Telmo, com a calma desconcertante dele chamou a assistência e pediu um carro
de recurso – um magnifico monovolume, o melhor carro que podíamos ter para
reconhecer um rali enlameado – e enquanto esperávamos, fizemos algo
extremamente importante: almoçar!
Resolvido o contratempo estávamos agora em contra relógio
para tirar notas no “Senhora da Fé”, no “Campo de Tiro”, na “City Stage” e
voltar a passar por todos estes percursos para confirmar.
Os reconhecimentos do “Senhora da Fé ocorreram sob um
verdadeiro dilúvio. A chuva era tanta naquela hora que, aliada ao denso
nevoeiro mal dava para ver a estrada. Tudo dificuldades acrescidas para quem
pretendia tirar umas notas o mais precisas possível, algo que conseguimos
“remediar”. Seguimos ao troço seguinte e neste as dificuldades foram mesmo com
a lama. Tanta lama que em todo o lado patinamos, nas subidas rezamos para não
atolar, e nas descidas fechamos os olhos para não ver as ribanceiras, mesmo a
circular quase parados.
Mas não é tudo: já nos últimos quilómetros do troço demos de
caras com um veículo “civil”, fora do contexto do rali, a bloquear por completo
o troço com uma avaria. Está bonito isto… se já estávamos atrasados, então
agora a coisa arrisca-se a descambar.
Mas nós não fomos lá para nos encolhermos perante as
adversidades; decidimos ir à luta e foi mesmo isso que fizemos. No tempo que
nos restava repetimos “Senhora da Fé” e “Campo de Tiro” (este novamente
interrompido, agora com uma árvore caída), e bem perto do termo horário para
reconhecer, uma segunda passagem pelo “Nascente do Ave”. Ficava a faltar a
Super Especial mas essa… olha, logo se vê!
Concluído o dia de trabalhos e superadas as dificuldades e
os atrasos, tanto o meu driver como eu sentíamos algum alívio por termos
conseguido e ao mesmo tempo alguma confiança pelo que fizemos e que parecia ir
resultar.
Chega então o grande dia ainda e sempre com as humidades
divinas que o São Pedro nos mandou em abundância. Verificações documentais,
colagem “dos cartazes” no carro e seguidamente verificações técnicas. Tudo ok e
a decorrer sem contra tempos.
Faltava-nos reconhecer a Super Especial e ainda o tentamos
fazer, mas como nesta apenas se podia reconhecer a pé e como o São Pedro estava
atento aos nossos passos e desatou logo a despejar mais uma litrada de água,
achamos por bem não ir ao terreno e quando fosse a hora, fazia-se “à vista”
para ver no que dava.
A sexta feira passou depressa. Tão depressa que sem darmos
conta, já o carro estava em parque de partida e nós prontinhos a dar inicio à
difícil jornada que tínhamos pela frente. Do meu lado, sem grande stress embora
a preocupação pelo estado do tempo e dos pisos pairasse no ar. Iria ser muito
complicado superar este desafio tanto para as mecânicas como para os homens, e
para comprovar estes receios, a organização decide desde logo (e em boa hora)
encurtar para metade a distância a percorrer neste primeiro dia – a dupla
passagem por “Nascente do Ave”.
Da nossa parte estávamos prontos a atacar os primeiros
quilómetros enquanto dupla e o Citroen Saxo (a nossa noiva, assim apelidado por
ir branco imaculado) parecia estar afinadinho e em forma para o que vinha a
seguir.
Chuva, muita chuva ao final da tarde (para variar!) e desde
logo soaram os alarmes com um problema que poderia vir a ser sério: o vidro da
frente estava a embaciar no percurso de ligação até ao troço. E à medida que
avançamos, a tendência era para piorar. Estávamos em apuros! A ficar cegos e
sem remédio. Tanto que na partida do troço a nossa visibilidade era já quase
nula. Digo quase porque mal arrancamos, ao fim de uns 200 ou 300 metros o quase
deu lugar ao totalmente. Não estou a exagerar (e a fotografia ao lado
comprova), íamos mesmo às cegas, sem conseguir ver o que as rodas pisavam. Foi confiar
um bocado nas notas, outro bocado na sorte, mais um bocado nos santinhos todos
e ir doseando o andamento para escapar desta sem comprometer o rali. Cerca de 6
quilómetros de puro sofrimento em que cada curva parecia o fim do mundo e em
que cada reta parecia… uma curva! Mas conseguimos! Chegamos ao final da
classificativa e já pudemos respirar de alívio. O tempo conseguido na pec foi….
Bom, o importante é ter saúde, não é o que dizem..?
Entretanto, no intervalo antes da segunda passagem, uma
limpeza a fundo no vidro e a “receita” milagrosa” anti embaciamento, aplicada
em generosas doses, foram a nossa esperança para não voltarmos a vivenciar
aquela tenebrosa experiência, até porque a noite já tinha caído e a
classificativa iria ser disputada no escuro.
Na ligação a visibilidade ainda tremeu um pouco mas desta
vez “o vidro ganhou juízo”, como dizia o Telmo. Calandra de faróis ligada,
concentração no máximo, olhos postos na estrada e cá vamos! O ritmo desta vez
era mais “solto”, mais ligeiro. O Telmo estava a aproveitar bem a estrada e o
carro, estava a tirar gozo da condução e eu sentia-o à medida que em cada
curva, o Saxo “rabiava” de traseira mas sem perder o norte. Curvas e contra
curvas feitas depressinha, notas a baterem certo, boa visibilidade apesar de
ser já noite e da chuva em alguns momentos ter passado a neve, e assim as
coisas fluem muito bem.
Já não é de agora o meu fascínio pelas classificativas
noturnas, mas se a isso juntarem o facto de estarmos “no meio do nada”, para
mim é uma sensação e uma experiência do caraças!! Acredito bem que os pilotos
sofram imenso, mas eu desfruto como um menino das corridas à noite.
Quase 40 segundos “papados” em relação à primeira passagem e
pela primeira vez sinto dentro do carro, a satisfação por ter corrido tudo como
queríamos.
Um “bacalhau” ao Telmo, grande domínio sobre o Saxo naquelas
condições. Gostei! Estava consumado o primeiro dia, com uma nota positiva.
Teríamos de manter a mesma onda para a etapa de sábado. Era muito importante
conseguir isso para levantar o astral numa equipa que vinha a sofrer sucessivos
azares.
O sábado amanheceu solarengo, com céu limpo e temperaturas
muito agradáveis. Mas isso foi na República Dominicana. Em Vieira do Minho o
tempo continuava um c* e iriamos enfrentar mais um dia de temporal com chuva,
neve, nevoeiro e aqueles pisos deliciosamente escorregadios (sim, estou a ser
irónico).
A primeira pec do dia era “Senhora da Fé” e foi mesmo
preciso muita fé para percorrer aqueles 10 quilómetros. O nevoeiro era tão
denso que não nos dava um campo de visão superior a 10 metros (nos sítios menos
afetados!!) e, se no dia anterior fomos às cegas pelo vidro, neste troço fomos
às cegas pelo que estava para lá do vidro. Impossível arriscar o que quer que
fosse, foi mesmo num ritmo moderado e de contenção que fizemos a
classificativa, sem desfrutar nadinha da experiência (eu parecia estar a viver
um “dejá vu”, pois em 2023 fiz este mesmo troço nestas mesmas condições. E não
gostei! Não havia necessidade de repetir). Ainda bem que reconhecemos o troço
em condições idênticas por assim já fomos preparados para o sofrimento sem
sabermos onde estávamos!
Passado o castigo, seguimos viagem para “Campo de Tiro 1” e
aqui o nevoeiro dava-nos paz. E foi neste troço que vi o Telmo mostrar do que é
capaz.
Não foram os pisos destruídos ou a muita lama a impedi-lo,
não foi a precária aderência do Saxo ao solo a impedi-lo. O meu bravo piloto
neste troço puxou dos galões e forçou o andamento para tirar o máximo de gozo
possível. E quando digo que forçou, estou a referir-me a um andamento que nunca
em momento algum nos colocou no limbo entre a estrada e a asneira. Sempre tudo
muito controlado, com derrapagens bonitas, com o “berro” do motor a mostrar
saúde, e com o carro a resistir à ”tareia” que esta classificativa lhe estava a
dar. E como o ritmo a debitar as notas me estava a saber bem, posso afirmar com
confiança que vínhamos depressinha.
14º tempo da classificação geral e 4º mais rápido entre os
carros de tração dianteira mostravam que estávamos a progredir no sentido certo
ao mesmo tempo que no gozo a bordo do Citroen estava a ganhar outra dimensão.
Aquele “rapaz desconhecido” estava-se a revelar e a mostrar-me que fiz muito
bem em ter ido a este rali, a experiência estava a ser ótima.
Seguiu-se a passagem pela Super Especial, a tal que não
reconhecemos e isso foi mais uma lição: não se pode facilitar em nada. Os
primeiros metros não foram um problema, um andamento seguro, algumas
atravessadelas de travão de mão e de seguida era preciso dar uma volta completa
ao percurso circular (aquela espécie de rotunda), mas foi aí que a falta dos
reconhecimentos se manifestou pois falhamos por completo a curva e isso
obrigou-nos a pisar a relva do jardim (as nossas desculpas, Sr. Presidente da Câmara,
foi sem querer…).
Bom, remediado este pequeno erro, completamos o restante
percurso sem chatices e fomos até à assistência.
A pobre “noiva”, coitada. De imaculada já não tinha nada e “os
maus tratos” que lhe foram aplicados durante a manhã, deixaram tudo quanto era
sitio, num estado lastimável. Ali deu-se um jeito, uma limpeza dentro do
possível (e aqui destaco a dedicação do Telmo, sempre atento aos detalhes e a
cuidar “do seu menino”), verificou-se o estado da máquina e como parecia estar
tudo no sitio, avançamos para a secção da tarde.
Nova passagem pelo “Senhora da Fé”, mas desta vez
livramo-nos do castigo: a classificativa havia sido neutralizada e iriamos
percorrer o trajeto em ligação. Isso permitiu-nos perceber o real estado dos
pisos em diversos pontos e posso-vos assegurar que aquilo parecia muita coisa
menos uma estrada. E não era o troço pior!!
“Campo de Tiro 2”, sim, esse era o pior. 9700 metros de
muitos buracos, de muitos lençóis de água, de muita lama e calhaus soltos, mas
que teríamos de os percorrer se quiséssemos atingir o objetivo.
Sem rodeios, o “Té” atira-se aos primeiros metros a andar
muito bem. “Temos 100, topo pelo meio mais 80 e direita 4”. Ainda me passou por
momentos pela cabeça perguntar onde é que o moço ia com aquela pressa toda mas
quando chegamos à tal direita e ele faz daquela curva uma obra de arte, ok… não
vou perder tempo com perguntas parvas que o homem sabe mesmo o que vai a fazer.
A partir dali foi saborear cada metro daquele terrível e
espetacular troço. Velocidades consideráveis, derrapagens mesmo “para a foto”,
travagens no sitio certo e uma cadência de notas que uma vez mais me estava a
saber lindamente – ao ponto de achar que sou um copiloto a sério – ou seja,
tudo a sair perfeito. O Telmo parecia talhado para aquilo. A saber ouvir, a
saber andar sem correr riscos e sem “adormecer”, em pouco tempo chegávamos ao
final da classificativa, aquela que iria definir a classificação final. O Saxo
foi a noiva mais linda do casamento, aguentou todos os assédios sofridos ao
longo desses quilómetros, nunca deu parte fraca e até deu um ar de sua graça ao
abrir a mala em andamento (talvez achasse que lá dentro havia falta de ar… não
sei).
Troço terminado, ambiente de satisfação, de alívio e de
dever cumprido. Um merecido cumprimento ao meu timoneiro porque não só havia virado
a página, como o havia feito num desafio extremo, em condições muitíssimo
difíceis, naquele que foi o seu primeiro rali em pisos de terra (entre os ainda
poucos que conta na sua carreira). Bravo! Parabéns driver, estiveste impecável!
(não sou só eu a dize-lo, o nono tempo absoluto conquistado nesta pec
confirma-o).
Restava agora cumprir a ligação até ao centro de Vieira do
Minho onde uma nova passagem pela Super Especial (agora sem contar para a
classificação), iria encerrar esta epopeia.
Mas calma que isto ainda não acabou! Achavam que “a noiva”
não ia reclamar de qualquer coisa? Ter uma dorzita de cabeça e dizer “agora não
me apetece”?
Pois… faltavam pouquíssimos minutos para entrarmos na especial,
com a chuva a não dar tréguas e nós a observarmos a progressão dos outros
concorrentes naquele traçado cheio de agua e lama quando eis que as escovas do
limpa vidros se recusaram a trabalhar. Estávamos lixados com F! Sem escovas, a
chover e com tanta lama a saltar para o vidro, é certinho que íamos andar aos
papeis e, embora não contasse para os tempos, não podíamos colocar em causa a
integridade do carro ou a nossa numa daquelas muitas árvores que rodeiam este
percurso. Só que é o Telmo. E o Telmo não se deixa vencer assim tão fácil. Não
sei como fez, não sei como conseguiu, mas o facto é que, onde eu pensava que
ele ia levantar pé para não perder a pouquíssima visibilidade que restava
naquele vidro imundo, ele ainda “dava mais gás”. E deu para ser rápido.
Minimamente rápido tendo em conta as condicionantes do momento. A minha alma
está parva! Uma vez mais, bravo driver! Excelente!
Estava assim concluída a prova, uma verdadeira prova de
esforço, de superação, de desafio constante, mas que foi vencida com sucesso. E
por falar em vencer, vencemos mesmo o Grupo X1! É merecido por todo o trabalho
que o meu piloto teve, por todas as horas mal dormidas, por todos os azares que
o teimavam em perseguir, e que ali em Vieira do Minho finalmente deram tréguas.
Foi um rali de emoções fortes, foi um rali duro, difícil,
desafiante, sofrido… mas foi um rali plenamente superado!
Uma vez mais o meu muito obrigado ao staff do Motor Clube de
Guimarães por todo o trabalho feito e espero que Vieira do Minho se mantenha no
mapa dos ralis por muitos anos, seja nas condições que forem.
Ao Telmo, ao Simão, ao “Licas”, ao Horácio, ao José Carlos,
ao Dino e a todos os envolvidos nesta aventura, agradeço igualmente pela
oportunidade e pela forma como me receberam na equipa, bem como pelo excelente
trabalho de bastidores que nos permitiu “abusar da noiva” (no bom sentido).
E para terminar, Telmo, não desistas deste sonho porque como
te disse, as tuas luvas são muito boas. Acredito nesse potencial. Gostei imenso!
Quanto a mim, vou descansar dos ralis e fazer uma pausa… de
5 minutos porque o próximo está já aí à porta.
Bons ralis maltinha…
Mas que cronica .......... Cativante que com tanta escrita e ninguém se cansou de a ler toda e que mais houvesse para ler ,, muitos parabéns e venham mais ralis , mais cronicas, mais emoções....
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