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quinta-feira, 20 de abril de 2023

UMA CRÓNICA DIFICIL DE ESCREVER


Normalmente, por estes dias pós corrida, eu deveria estar eufórico, com as ideias a fervilhar, e pronto a debitar palavras à bruta, que contassem de forma mais ou menos efusiva as aventuras e incidências de mais um rali concluído com sucesso, neste caso o Rali de Famalicão.

Mas desta vez isso é diferente. De repente assentamos os pés no chão e questionamos “o que raio andamos aqui a fazer”. 

A semana anterior ao Rali de Famalicão, e o próprio fim de semana do rali foi um período muito complicado de gerir, muito difícil de aceitar. As notícias trágicas que nos chegaram do mundo dos ralis arrombaram-nos a mente, deixaram-nos inquietos, numa espécie de ruido silencioso que nos põe a pensar e ao mesmo tempo não nos deixa pensar.

Mas como o caminho faz-se caminhando, lá tínhamos um rali para disputar e foi com o pensamento enlutado que entramos na prova, mas com a vontade de prestar tributo a quem nos deixou de forma tão abrupta e que adorava (talvez até mais que nós) este nosso desporto.


O Rali de Famalicão apresentou-se um ano mais como um enorme desafio, pelas suas características próprias: troços muito rápidos, com muitas mudanças de ritmo, diferentes tipos de piso, muitas armadilhas próprias de estradas que atravessam zonas populacionais… enfim, ingredientes reunidos para nos exigir a nós competidores o dobro da atenção e da concentração.

Este ano, o Team Baia optou ainda por realizar um troço com cerca de 17 quilómetros, algo não muito comum nos ralis “regionais”, mas que a mim pessoalmente me agrada porque gosto de desafios, sobretudo os que nos fazem lembrar de como eram os ralis no antigamente. A ajudar à festa, as previsões de calor para o dia do rali faziam adivinhar que não iria ser de todo uma prova fácil.

E não foi! Bem cedo lá partimos para Famalicão para os reconhecimentos, com muita atenção aos detalhes nas notas porque neste rali isso é ainda mais importante. Duas passagens por cada um dos troços enquanto o nosso staff da Carvalhido Racing Team tratava nos bastidores de realizar as verificações e preparar tudo para a hora da verdade (obrigado malta!).


Na hora da partida a boa disposição e o ambiente descontraído eram o tónico para a tarde e noite cheia de adrenalina que estavam para vir. E foi dentro desse espirito que partimos para a primeira classificativa. Concentração no máximo, estratégia alinhada com o meu piloto José Carvalhido: precisávamos de “poupar” a mecânica e ser cautelosos nas zonas mais técnicas e complicadas (ai as lombas… as famosas lombas..!), e atacar um pouco mais nas secções onde nos sentíssemos mais à vontade.

A primeira parte do troço, em pisos maioritariamente de paralelo, serviu para nos deixar um alerta! Escorrega muito, é preciso saber dosear o ritmo. Uma sequencia bastante rápida entre casas e logo passamos para o asfalto “num bocadinho de estrada” que dá mesmo muito gozo fazer depressa. Sem qualquer problema ou susto, la foi o nosso “leãozinho” até ao cruzar da meta. 

“-Espetacular!! Muito boa condução, foi top!” – comentávamos mesmo ainda antes da paragem no Stop.


Seguia-se uma pequena ligação até à classificativa seguinte, a tal de 17 quilómetros e pelo meio, numa paragem para aliviar o equipamento e refrescar um pouco do muito calor, dou uma vista de olhos na internet para ver a tabela de tempos e a primeira coisa que me aparece é mais uma notícia daquelas que nos dão um murro no estômago, desta vez num rali nas Astúrias. Gelei, engoli em seco, arrumei o telefone e calei-me bem caladinho com os pensamentos a mil. Não interessava comentar com o Zé o que acabara de saber porque era importante manter o foco, mas “cá dentro” só me questionava, como é possível…? Parece que quando acontece (e sabemos que pode acontecer), vem tudo de uma vez.

Bem… vamos lá para a classificativa seguinte tentando abstrair-me daquelas notícias.

Novamente, concentração, apostar num ritmo seguro e apertar um pouco mais nas zonas mais fáceis. O troço começa com uma sequencia bem gira de curvas rápidas e sentimo-nos seguros, embora com o carro a escorregar bastante. Precisávamos de pneus mais duros para o calor que estava, mas não temos e é com isso que temos de lidar.


Curva e contracurva feitas a preceito, vamos ambos a “curtir”, rapidinhos e seguros, mas eis que soa o alarme quando ainda só tínhamos feito ¼ de troço (ou talvez menos): bandeira vermelha, alerta no GPS do carro, prova interrompida. Imediatamente aliviamos como mandam as regras e limitamo-nos a percorrer todo o restante percurso em ligação, até ao local da incidência, já bem perto do final. Felizmente não passou de um susto e o acidente do concorrente em causa acabou por resultar felizmente em males menores. Contudo, quando vemos um colega a ser retirado para uma ambulância, é sempre algo que mexe cá dentro…e foi “só mais uma” para juntar a todo aquele nó na barriga que já vinha de trás com os acidentes da Croácia e nas Astúrias. 

Na assistência decidimos apostar em mudar as rodas traseiras para tentar minimizar o “escorregar do carro” nas segundas passagens. O objetivo mantinha-se: terminar o rali tentando melhorar o nosso desempenho em relação à primeira secção (como é lógico, lutar por algo mais na nossa categoria, contra “armas” bem diferentes e muito mais performantes seria uma espécie de suicídio – embora já o tenhamos feito noutras ocasiões… devíamos estar tolinhos).


A segunda passagem por Fradelos / Outiz estava atrasada (mais um despiste com necessidade de intervenção dos meios de socorro), e quando arrancamos, com os pneus frios o escorregar era ainda pior. Mas não melhorou com o passar dos quilómetros. Sentíamos o carro a escorregar por todo o lado, feito um maluco. E o Zé, amarrado ao volante a fazer o equivalente a um mês de ginásio. Mas como aquilo não era comigo, lá continuei na minha função de lhe “chatear a cabeça” enquanto ele tenta conduzir rápido (e até vai conseguindo)! Mais uma classificativa concluída com sucesso e muita diversão, baixamos o nosso tempo, estávamos satisfeitos.

Seguia-se “o carrossel” de 17 quilómetros e mantivemos a concentração para continuar dentro do mesmo ritmo. As coisas fluíam, vínhamos bem, com o carro a escorregar bastante (não foi boa aposta a mudança de rodas), e esse escorregar deu origem a uma pequena falha da nossa parte, nada de especial, mas a divertirmo-nos bastante. Pelo meio somos ultrapassados por uma bala depois de algum tempo perdido nesse pequeno erro da nossa parte (o Rafael e o Alberto vinham a voar mesmo!) mas chegamos ao final sem qualquer problema e restava agora apenas a dupla passagem pela especial noturna.

Mas regressavam as más notícias. Após a nossa passagem, um acidente “feio” a obrigar à paragem da prova e a nova intervenção dos meios de socorro. E desta vez era bem mais preocupante, bem mais sério nas consequências para os envolvidos.

É nestes momentos que nos cai a ficha. Outra vez?? Não era definitivamente a semana certa para correr… o azar parecia ter-se instalado nos ralis.

É inegável que o sucedido nos acaba por tirar motivação, e sem saber ao certo do real estado da equipa, a parte desportiva fica imediatamente para segundo plano. Aos poucos vamos sabendo “aqui e ali” de algumas atualizações do estado deles e vamo-nos acostumando à ideia de que estão em boas mãos e a ser bem tratados.


A Super Especial noturna, um troço de cerca de 2 quilómetros, bem engraçado, serviu apenas para cumprir calendário. Tentamos desfrutar daquele encerramento de rali presenciado por tanta gente (e aqui abro um parênteses para dar os parabéns à organização pela forma como decorreu a classificativa, com os concorrentes a intercalarem as duas passagens, e tudo a funcionar na perfeição, sem atascos ou atrasos. Muito bem Team Baia!) e levamos o nosso “leão” até ao final com o sentimento de dever cumprido.


Rali terminado com sucesso, carro sem o mínimo dos problemas, equipa satisfeita. Poderíamos ter andado um pouco melhor? Eventualmente podíamos. É importante? Não! Estamos perfeitamente contentes com o nosso rali, divertimo-nos, não arriscamos na parte da segurança e esse é o nosso prémio! Ao lado, os nossos companheiros também conseguiram terminar todos sem “chatices” levando os seus respetivos carros até ao final, o que para eles acaba também por ser uma pequena vitória e quando todos estamos contentes, só podemos fazer um balanço muito positivo.

No inicio desta (já longa) crónica escrevi que nos questionamos “o que raio andamos aqui a fazer”. Pois bem… andamos aqui por uma paixão, andamos aqui porque a adrenalina é enorme, andamos aqui porque este desporto é muito mais que isso e é nos momentos difíceis que vemos o melhor do ser humano: o espirito de entreajuda, a amizade, a entrega a uma causa, e esses valores evidenciaram-se em diversos momentos neste rali, desde a evocação da memória dos que nos deixaram recentemente até aos cuidados prestados por alguns dos concorrentes a outros, aquando dos seus infelizes acidentes. Os carros são um bom pretexto para realçar todos esses nobres valores.

Foram dias difíceis, mas foram dias que nos confirmaram que os ralis são especiais.

Força Maria João, força Octávio!

Em memória de Craig Breen, Julio César Castrillo e Francisco Alvarez. Que descansem em paz!


2 comentários:

  1. Li de princípio a fim e digo, somos humanos que gostamos de um desporto de risco mas que é compensado pela interajuda que falas e e as amizades que se criam, abraço parabéns Miguel

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