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terça-feira, 5 de setembro de 2023

PRIMEIRO ESTRANHA-SE, DEPOIS ENTRANHA-SE


As primeiras linhas desta crónica começaram-se a escrever há várias semanas atrás, ainda em Castelo Branco. Na altura, com um certo amargo de boca pelo desfecho antecipado daquela prova, o André disse que haveria de me proporcionar outro rali, mas já com um carro diferente.

Pois bem, ele cumpriu! Cumpriu com um novo rali que foi uma verdadeira aventura, e cumpriu com um carro diferente… e que carro!!

“Oi Miguel, tens planos para Vouzela?” – Foi desta forma que se iniciou mais um capítulo desta história, quando o André Cabeças gentilmente me desafiou para o navegar no Constálica Rallye de Vouzela e Viseu. Sendo esta uma das minhas provas favoritas pelo seu belíssimo traçado e envolvência, sem hesitações respondi que não tinha planos e, portanto, aceitava navega-lo caso ele me quisesse levar. A resposta foi imediata: “Vamos, tá combinado!”


Tudo alinhado para que a minha presença naquela prova se repetisse, mas desta vez a fasquia estava bem mais elevada. A substituir o Mirage, vinha agora a caminho um Ford Fiesta R5 – uma máquina de competição pura, saída dos fornos da M-Sport e que foi um dos mais bem-sucedidos carros de ralis da sua classe marcando toda uma época tanto em campeonatos nacionais um pouco por todo o mundo, como no próprio WRC. A juntar a estes pergaminhos, um pequeno detalhe: este vosso escriva nunca antes havia andado a bordo de um R5 o que, aliado à responsabilidade de acompanhar um piloto reconhecidamente rápido, tornava tudo ainda mais aliciante e positivamente assustador.

Na data marcada, faço-me à estrada na companhia do amigo, conterrâneo e também navegador (este, dos “a sério”) Nuno Carvalhosa, diretos à lindíssima cidade de Viseu onde iríamos pernoitar para que no dia seguinte, bem cedinho nos fizéssemos à estrada para os essenciais reconhecimentos, mas não sem antes degustar a famosíssima vitela à moda do Dão (ir à região do Dão e não saborear o que o Dão tem para nos oferecer era o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa). Uma noite bem dormida, despertar matinal, fresquinho como uma alface e siga para os troços que eu já conhecia do ano passado e de edições de anos anteriores deste rali.

À semelhança do que tinha experienciado em Castelo Branco, o sistema de notas do André é bastante simples e trabalhar com este piloto torna as coisas ainda mais fluídas e fáceis. Desta forma, os reconhecimentos decorreram sempre dentro “da ordem de trabalhos” com os timings acertados e sem qualquer falha ao longo de toda a manhã. 


Mas o ponto alto deste primeiro dia seria servido sob a forma de um pequeno teste ao Fiesta R5, vestido a rigor com a espetacular fatiota cinza e verde. Logo que chegamos ao local marcado, já lá se encontrava a competente estrutura da Pardal Sport com o bólide à espera do seu timoneiro (e por consequência, do pendura de ocasião, que se via desta vez como um co-piloto de nível internacional, tal o peso da responsabilidade daquilo que estava para vir). O primeiro impacto que tenho logo que avisto aquela máquina é surpreendentemente positivo. A nível visual e estético, o Ford Fiesta estava na minha opinião ainda mais bonito do que nas fotografias – e eu tinha-o já achado lindíssimo nas fotos – tão bonito que não resisti a ficar por momentos a admirar cada detalhe, cada curva, cada angulo daquele que iria ser o meu escritório por um fim de semana. E não me lixem!! Os olhos também comem… e eu lambusei-me bem com o que os meus olhos tinham ali ao alcance.

Já só imaginava como seria andar lá dentro da maneira que o André Cabeças sabe: a fundo, rápido como tudo! E como devem imaginar, cá dentro havia um friozinho, umas borboletas, um nó no estômago… nem é bom pensar! Mas havia também uma ansiedade dantesca de experimentar “aquela coisa”.

Pois bem, não nos demoremos mais. Salta lá para dentro, Miguel Castro, sente como é a tua cadeira e experimenta o conforto. Aqui o mestre Pardal parecia já ter adivinhado e a posição em que me iria sentar estava praticamente perfeita – nem os cintos foi preciso ajustar. Que maravilha! Que maravilhado eu estava por vivenciar ali naquele momento um marco na minha carreira. Mas bom, chega de paleio que isto tem piada é a andar.


Motor a rosnar a plenos pulmões, cheio de saúde, uma passagem em ritmo lento para aquecer a máquina e a seguir já ia ser depressa.

“Stage mode” ligado, rotações no máximo e… que disparo!! O arranque do carro naquele instante provoca mesmo a tão badalada sensação de desmaio e sinto-me positivamente empurrado pela aceleração ao mesmo tempo que debito as notas de andamento que o André precisa para fazer aquilo que tão bem sabe.

Sinto-me confortável, sinto-me confiante, e aquele nervosismo de pensar que a velocidade vai ser tanta que vou ter dificuldades em acompanhar com as notas, dá imediatamente lugar a um sentimento de confiança mas revestido de responsabilidade que não permite em momento algum perder a concentração.

À medida que as passagens pela pequena classificativa se iam sucedendo, o meu piloto sentia-se cada vez mais à vontade a espremer o Fiesta naquele trajeto de asfalto.


“O carro é fabuloso!” “Que comportamento em curva!” “Espetacular em todos os aspetos”… eram estas as frases que se iam ouvindo da boca do André acompanhadas por aquele sorriso de orelha a orelha. Creio que isso é muito bom sinal. Da minha parte, sem ter qualquer experiência neste tipo de carros e sem qualquer termo de comparação, a reação era de total encanto / espanto / euforia! Nunca tinha experimentado nada assim e a “serenidade” com que tudo acontece lá dentro é mesmo desconcertante. Mesmo tendo a noção de que se anda realmente muito depressa, acontece tudo “sem drama”, de forma tão normal! E depois é a forma de curvar… e há ainda o poder de travagem que arruma para um canto as leis da física. E podia continuar a enumerar aspetos surpreendentes e incríveis deste carro, mas de um modo resumido, posso afirmar convictamente que não vou esquecer este “batismo”.

Teste realizado, era hora de voltar aos trabalhos, ou seja, investir o restante do dia no que faltava a nível de reconhecimentos pelas espetaculares classificativas do Dão. E que bom foi voltar a percorrer aqueles percursos fabulosos, em especial o meu favorito “Penoita”, mas na memória, a tónica dominante era a adrenalina louca de ter experimentado as sensações de um carro de topo pela primeira vez.

foto: Ricardo Sousa

Primeiro dia de rali e primeira encrenca. A meteorologia havia mudado e aquele sol radiante dos dias anteriores deu lugar a um céu escuro, tempestuoso, preocupante para quem tem um rali pela frente e logo num carro a estrear e no qual é preciso jogar bem com muitos fatores de afinação, nomeadamente com a escolha dos pneus a utilizar.

Tempo muito instável e a agravar-se na hora de começo da prova, chuva e trovoada a aparecer e, manda a lógica, nestas situações a aposta é no pneu de chuva. Seguimos essa lógica e fomos para os troços, mas é aqui que “a porca torce o rabo”.

Ao longo de toda a ligação de Viseu para Vouzela, a tempestade ia ao nosso lado, mas parecia ir cada vez mais afastada. Parecia, e estava mesmo a afastar-se pois a estrada que pisávamos mostrava-se cada vez mais seca à medida que nos aproximávamos das classificativas de Vouzela. Os dois íamos dentro do carro meio perplexos sem saber muito bem o que pensar daquele fenómeno que nos estava literalmente a tirar o tapete (molhado). E viria mesmo a confirmar-se: pisos totalmente secos e nós sem a melhor aposta nos “sapatinhos” de corrida do Fiesta. Mas era o que tínhamos de enfrentar e foi com isso mesmo que lidamos.

foto: DAmotorshot

Primeiro troço (Senhora do Castelo), entrada com cautela mas rápida e uma vez mais dou por mim a “alucinar” não só com a rapidez e eficácia do maquinão, como também com o à vontade com que o meu piloto ataca cada curva, cada travagem, cada metro, num ritmo tão frenético que é totalmente incomparável a tudo o que já havia experimentado. Mas de uma maneira estranha, ali dentro não se nota “o tal drama”. Parece tudo muito sossegado, tudo muito comedido, nem a velocidade se nota e chego a pensar que se calhar até nem vamos tão depressa quanto isso. Mas íamos! E sei disso porque o ritmo exigido para o “cantar das notas” estava igualmente frenético e a dar-me um gozo formidável. 

Terceiro melhor registo para começar, é bem bom tendo em conta que, por um lado era a estreia do carro, sem qualquer afinação ao jeito do piloto e portanto as expectativas de um bom resultado final não eram muito altas (importava mais testar e ganhar quilómetros, do que entrar em loucuras), e por outro lado, a questão dos pneus que deram apenas para remediar mas não era de todo a situação ideal. 

Excelentes sensações vividas a bordo do carro, satisfação por conseguirmos superar o troço sem problemas, e estava consumada a minha tão aguardada estreia num R5. Foi fantástico!

foto: DP Motormedia

Seguia-se então a primeira das duas passagens pela brutal Serra da Penoita e aqui as dificuldades com os pneus fizeram-se sentir um pouco mais obrigando a dosear o ritmo em certos pontos. Era crucial não fazer nenhum “doi-doi” no novo menino da equipa e por isso havia que se fazer uma gestão inteligente do ritmo de prova.

Da minha parte voltei a achar o carro absurdamente eficaz e sem qualquer mostra de brutalidade, embora consciente que daria fara fazer melhor com outras condições. Estava a ser tão estranha a sensação de tranquilidade que se vivia a bordo da máquina, talvez eu tivesse criado uma expectativa diferente, de maior agitação. Mas a experiência ainda agora tinha começado e eu já dava como ganha a minha prova tal era o gozo que estava a ter ali.

foto: DP Motormedia

Para as segundas passagens pelas classificativas vouzelenses a história repetia-se. A chuva que entretanto circundava as serras ao redor do município deixava num ou outro ponto alguma humidade no piso mas, regra geral, os troços continuavam secos e nós continuávamos com pneu de chuva à espera que chova. Só que não choveu e limitamo-nos a “sobreviver” mediante as condições que tínhamos.

Restava neste primeiro dia a dupla passagem pela curta especial noturna e, se durante a tarde a palavra de ordem foi cautela, aqui seria cautela redobrada, sem atacar minimamente. Piso bastante escorregadio e propício a cometer deslizes, mas um traçado muito interessante que, se fosse feito de dia seria de muita mais adrenalina. 


Percorremos as duas passagens com grande concentração, mas com uma boa margem de segurança e assim dávamos por concluída a primeira etapa desta espetacular prova num meritório 3º lugar da classificação geral, mas com muita vontade de explorar a maquina nos troços do dia seguinte, com a esperança de que as condições climatéricas fossem favoráveis para o nosso lado.

O segundo dia amanhece algo solarengo, com a nebulosidade a dar lugar a céu azul por alguns momentos e isso dava-nos algum alento e confiança de que o dia nos iria ser mais favorável.

Na hora de partida decidimos apostar desta vez nos pneus de seco sem suspeitar o que viria a seguir. E o que veio a seguir foi mais um equívoco monumental na nossa aposta. Chegados ao primeiro troço do dia, damos de caras com o mau feitio do São Pedro, que muito se deve ter rido com as nossas caras ao ver que estava a chover nas localidades por onde iríamos disputar de seguida os troços de Povolide e Aeródromo.

foto: DP Motormedia

“Fizemos o pleno de asneira”
, comentávamos a breves instantes de entrar na classificativa, de modo a quebrar um pouco a dor da realidade.

Mal entramos em prova deparamo-nos de imediato com uma grande dificuldade para manter o bonitinho Fiesta com as rodas na estrada, tal era a falta de aderência em “Povolide 1”. E a história repetiu-se em “Aeródromo 1”, como comprovam as tabelas de tempos. Carro a escorregar por todo o lado, travagens feitas com muita maior antecedência (e às vezes com uma falta de ar do caraças!), condução muito mais conservadora. Mas pelo menos continuávamos em prova e com o carro a funcionar em pleno. Isso era o mais importante.


Chegados à assistência trocamos novamente as borrachas para o composto de chuva e com alguma afinação de suspensões lá seguimos viagem para as segundas passagens, mas o cronómetro já tinha ditado a sua sentença, pelo que apenas teríamos de ser inteligentes e cautelosos para não comprometer em nada toda a integridade do binómio carro/pilotos.

Rali concluído no quinto posto final, um resultado não muito brilhante tendo em conta as sensações iniciais, mas muito importante e de muita aprendizagem nesta primeira saída do André com a nova máquina.

Da minha parte, plenamente satisfeito pelo fim de semana desportivo que tivemos, plenamente satisfeito porque “afinal sou capaz” de acompanhar o ritmo de um R5 e, creio não estar a dizer nenhuma asneira, consegui desempenhar a minha função sem falhas. Isso é também motivo de satisfação.

foto: DAmotorshot

Só que agora, passadas umas 48 horas + iva após o término do rali, dou por mim a pensar… Que coisa estranha foi esta de fazer um rali com um R5? Enquanto lá estive parecia tudo normal, parecia apenas mais um rali em mais um carro de corridas. Tanta ansia e tanta expectativa, e afinal de contas é “só aquilo”? Senti-me perfeitamente à vontade contrariamente ao que achava antes do rali, como se já tivesse feito 500 ralis de R5… Estranho, não é..?

Por outro lado… que foi isto que aconteceu? Que loucura foi esta? Se eu já sabia que navegar o André Cabeças é uma experiência enriquecedora, quer pela sua postura tranquila que facilita os trabalhos, quer pelo seu inegável talento para o volante, navegá-lo a bordo de um carro de fábrica de 300 cavalos com tudo o que há de bom e do melhor é qualquer coisa de inexplicável. É viciante! É alucinante! E quero mais! Porque agora, passado este tempo todo é que dou por mim a “ressacar” verdadeiramente desta experiência e sinto cada vez mais falta de voltar a sentir “aquilo”, de sentir a adrenalina de ditar notas a um ritmo insano, de repetir, de voltar a andar de Ford Fiesta R5…. Acho que ficou entranhado!


Primeiro estranha-se, depois entranha-se… percebem…?

Parabéns aos vencedores e a todos quantos souberam sobreviver a este desafio. Parabéns ao conterrâneo Nuno Carvalhosa e ao Frederico Castro que tiveram também eles uma espetacular estreia com o Mirage.

Obrigado a todo o staff da Pardal Sport pelo excelente trabalho de bastidores e pela forma como me receberam (pela segunda vez). E a ti, André Cabeças, nunca será demais agradecer as fabulosas oportunidades que me tens dado e que me tem dado tanto a aprender.


Até breve, bons ralis!


3 comentários:

  1. Esta arrepiou mesmo.... Senti toda adrenalina vivida nesse fim de semana desportivo . Parabéns pela excelente prova ao mais alto nível 👌

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  2. Muito bom mesmo, só tenho três palavras....Maquina.... Tempo.... Velocidade . Top

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