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quarta-feira, 5 de julho de 2023

RÁPIDO DEMAIS PARA PÔR UM TÍTULO


Não é por acaso que inicio mais este devaneio literário com uma espécie de “não título” que remete para a rapidez, pois foi esse o ingrediente principal do passado fim de semana por terras da Beira Baixa.

Foi com muito agrado que recebi o convite do André Cabeças para o navegar no Rali de Castelo Branco / Vila Velha de Ródão 2023 (perdoem-me mas o nome da prova é muito extenso, irei apenas referir-me à prova como simplesmente Rali de Castelo Branco) e foi quase sem pensar no assunto que aceitei o convite, pois uma oportunidade destas não aparece todos os dias. Experimentar um rali novo, num carro totalmente diferente daquilo a que estou habituado, com um piloto reconhecidamente rápido, não é coisa que desperdice e portanto…embarquei na aventura com entusiasmo!


Aqui começa a rapidez! Primeiro a rapidez com que o entusiasmo / ansia toma conta de mim (eu, que até nem gosto nada de ralis e muito menos de navegar), depois a rapidez com que comecei a pôr os pés na terra e a pensar naquilo que iria enfrentar. Nunca andei com o André (e não coloco minimamente em causa as suas qualidades como piloto e como pessoa), não sabia até que ponto seria capaz de corresponder às “suas exigências” enquanto piloto; nunca andei no Mirage, um verdadeiro canhão com os seus mais de 300 poderosos cavalos e que habitualmente se coloca nos lugares à cabeça das classificações dos ralis onde participa, portanto rápido como tudo, e portanto a exigir da navegação uma concentração suprema e uma eficácia total e à prova de falhas; nunca corri em Castelo Branco e pelo que oiço dizer “aqui e ali” é um rali muito rápido, com bastante sujidade nos troços e disputado em Junho, de certeza que não irá ser preciso levar um casaquinho para o frio.

E são estas dúvidas que me vão inquietando um pouco o espírito nos dias que antecedem a ida para Castelo Branco. Levo 10 anos disto e já sei mais ou menos como se faz, mas o nível a que o André habitualmente roda nas corridas é diferente daquilo a que estou mais habituado e eu não quero falhar!

#DIA1


Bem cedo faço-me à estrada conforme o combinado, para estar na cidade albicastrense a levantar o road-book e de seguida dar início à verdadeira epopeia dos descobrimentos das estradas desta prova, qual navegador português do Século XVI, a descobrir o caminho marítimo para um sitio qualquer.

Pelo caminho, na companhia de James, Moby, Nightwish, Queen e outros senhores do género, lá vou eu sereno mas inquieto, confiante mas desconfiado, com o pensamento “a mil” nas tais dúvidas sobre a minha real capacidade de chegar a um terreno que não conheço de lado nenhum e cumprir à risca a função que me estava confiada a bordo de um carro potente, com um piloto rápido e sem cometer falhas.

Estou eu debruçado nesta minha pequena paranoia enquanto conduzo e eis que literalmente entro numa zona de denso nevoeiro, ideal para enquadrar as minhas dúvidas e inseguranças. Que raios, parecia mesmo cena dos filmes: o nevoeiro a transportar-me para o incerto, sem que eu pudesse vislumbrar o que viria a seguir.

Mas o que veio a seguir foi deixar a névoa para trás e dar as boas vindas ao sol radiante e novamente, como num filme, a primeira coisa que vejo é um outdoor gigante a anunciar com pompa e circunstância o Rali de Castelo Branco. É então que, tal como uma metáfora, as dúvidas dão lugar à convicção que estou a ir na direção certa, é para aquilo que vou, é para aquilo que tenho de estar concentrado e é para aquilo que tenho de acreditar que sou capaz!

Chegado a Castelo Branco, e cumpridos os tramites habituais com o levantamento do road book, enquanto aguardo a chegada daquele que iria ser o 14º piloto dos meus 10 anos à boleia, decido aproveitar o tempo para folhear aquele volumoso caderno de itinerário (a espessura só por já metia respeito), e como estou em terreno desconhecido, olhar para aquelas figuras, para aquelas indicações, só me deixava ainda mais confuso.

Tal como me deixava confuso o funcionamento do “Qualifying”, uma novidade absoluta para mim. Mas como ninguém nasce ensinado, estava preparado para a aprendizagem que esta nova aventura me iria proporcionar.


Os reconhecimentos foram decorrendo em bom ritmo, com timings bem definidos e mais ou menos bem cumpridos. As notas que o André usa são bastante simples, e “a coisa” estava a fluir com naturalidade. Mas havia ali algo que me estava a deixar algo boquiaberto (pela positiva, diga-se): a rapidez dos troços propostos pela Escuderia Castelo Branco, fazem deste rali um desafio de grande adrenalina, intensidade, emoção. E como se não chegasse, a tal sujidade nas trajetórias motivada pelas muitas zonas de cortes juntava-se à lista de características que tornam esta prova algo totalmente diferente de tudo o que já fiz! Já estou a adorar a experiência e o meu piloto é bastante metódico e profissional na forma de trabalhar, mas ao mesmo tempo dentro de uma descontração e leveza que me deixa totalmente à vontade. E tranquiliza-me também quando falo nos meus receios de “não ser capaz”, de falhar em algo. “Vamos curtir”, dizia ele sem impor pressão! Que quebra gelo!!!

Aos poucos apercebo-me melhor da “dimensão” da aventura em que estava metido. De facto a rapidez dos troços iria tornar a navegação em algo fulcral e onde o ritmo seria obrigatoriamente muito elevado, a exigir muito dos penduras. Mas há mais: o calor! A “tosta” com que aquelas região brindou os visitantes por estes dias era demasiado quente para ser verdade. Mas era verdade! E era quente! Como iria ser durante a prova, vestidos até aos dentes com equipamentos tão aconchegantes, fechados num carro pronto a “dar calor” e a um ritmo frenético que nunca tinha apanhado antes..? Resumindo, todas as dificuldades que eu achava que este rali ia ter, estavam lá em força!

#DIA2


Se no primeiro dia nos concentramos mais nas classificativas de sexta feira, o segundo dia foi mais focado nos belíssimos troços de sábado, com cenários um pouco diferentes, mais verdejantes, mas igualmente rapidíssimos, com muitos cortes, algumas zonas estreitas e muita, mas muita adrenalina mesmo! A imagem que o impacto inicial me que tinha criado deste rali mantinha-se. Se eu já sabia disso, estas classificativas vinham reforçar a certeza de que eu iria ter muito trabalho pela frente para corresponder àquilo que o meu bravo piloto necessita para andar como ele sabe, que é rápido, depressa, veloz e a fundo!

Os trabalhos decorreram sempre dentro do planeado, as notas tinham sido afinadas a bom ritmo e a descontração da dupla ajudou à fluidez desta preparação tão essencial. Dávamos então por concluída a fase de reconhecimentos e foi a altura de conhecer aquele elemento que me impunha respeito desde o primeiro momento: o Mirage havia chegado a Castelo Branco para as verificações e foi ali que tive o primeiro contacto “com o escritório” e que tomei o pulso ao lugar onde iria viver nas horas seguintes. O primeiro impacto sentido a bordo veio sob a forma de aroma daquela gasolina especial que tantas alegrias nos dá quando é aplicada no motor certo. Que cheirinho! Melhor que um daqueles pinheirinhos ambientadores. Já gosto do carro e de estar lá dentro!


#DIA3

foto Paulo Homem - Ralis Online

“It’s show time!” É a hora de entrar em ação. Bem cedo para fugir ao calor (só que não), lá estávamos acompanhados pelo staff da Pardal Sport para atacar os pouco mais de 3 quilómetros do Qualifying, um troço muito sujo, estreito, enrolado, bastante mais lento do que todo o restante rali, mas que era importante fazer bem para tentar apanhar uma boa ordem de partida para a prova.

A primeira passagem, ainda sem contar, foi o momento em que sinto finalmente na pele o que anda aquele carro e o que guia aquele piloto. E posso-vos garantir que é muito! Não fraquejei, não dei parte fraca, aguentei-me nos meus labores de pendura e penso que superei bem aquela estreia. Mas não dá para ignorar as sensações a bordo. Primeiro de tudo o imenso calor (algo que já se adivinhava), mas a potência, a estabilidade em curva, o poder de travagem, o próprio rugido do motor, tudo alinhado ao mesmo tempo serviu para perceber o que me esperava para o restante fim de semana. Sem tirar qualquer valor a qualquer outro dos pilotos com quem orgulhosamente já andei, a verdade é que a este nível não é todos os dias. Faltam-me adjetivos, mas caramba… gostei! Oh, se gostei...!

Mas isto não acaba aqui, ainda tínhamos mais uma passagem de “treinos livres” antes da qualificação, essa sim a contar para algo que não eram feijões.

foto OnePace Media

Apostados em melhorar o tempo (muito bom) conseguido na primeira passagem, entramos com a concentração em alta mas logo nos primeiros metros a coisa quase descambou. A muita terra que cobria por completo uma suposta estrada de asfalto atirou-nos contra o rail num pequeno e amoroso beijinho com a frente esquerda mas sem amasso (sem danos para o Mirage tal foi a baixa velocidade), contudo o suficiente para nos deixar em sentido com as dificuldades que o rali nos iria colocar.

Cumprimos o restante traçado num misto de cautela e rapidez para tentar perceber se haveria danos de maior provenientes daquela ligeira saída e seguimos para a zona de assistência onde o “mestre” Pardal iria verificar com olhos de ver se estava tudo ok. E estava! Era hora de entrar no troço, desta vez com o foco no cronómetro.

Sem exageros, com atenção redobrada na dita curva e num bom ritmo (eu diria frenético), conseguimos sem qualquer sobressalto amealhar o 12º tempo da classificação geral no Qualifying, 1º tempo entre os concorrentes do Promo. Estava o objetivo inicial cumprido e para mim estava consumada a estreia, penso que com um balanço positivo. Sentia-me pronto para o rali propriamente dito! E o rali era já a seguir…

foto Duarte Pires - DPMOTORMEDIA

O primeiro dos dois dias de competição arrancava pela tarde de sexta feira com as classificativas de Santo André das Tojeiras e Vila Velha de Ródão, antes do reagrupamento de final de tarde. Posteriormente, à noite teria lugar a dupla passagem pela Super Especial bem no centro da cidade.

O calor apertava no momento do arranque mas nada comparado com aquele momento em que colocamos o capacete, fechamos o fato, apertamos os cintos de segurança e fechamos a porta para o momento solene de concentração total onde todos os ruídos e focos de distração desaparecem.

Momentos antes da partida para a primeira classificativa quase conseguimos ouvir os batimentos cardíacos, concentração absoluta. Relembro as primeiras curvas do troço ao André com uma leitura rápida de meia dúzia de linhas do caderno de notas enquanto o relógio nos esgota todos os segundos que restam antes daquele 3,2,1 final… É agora!

Não vos consigo descrever aqueles metros iniciais, tão rápidos e tão encadeados. Era simplesmente surreal a velocidade com que se passava de curva para curva, o ritmo imposto, o poder de travagem (então este..! Minha nossa!).

Seguia-se uma secção de cerca de 2 quilómetros cuja descrição se resume mais ou menos desta forma:

“Esquerda a fundo, 60, direita a fundo, 100, direita a fundo, 100, esquerda a fundo, 150, direita a fundo, 200, esquerda 6, 150, direita 6, 80”…

Para quem está mais familiarizado com esta espécie de escrita “hebraico-fenícia”, facilmente compreenderão o quão devagar íamos ali (ironia). Para quem desconhece os códigos da navegação em ralis, de forma sucinta asseguro-vos que isto significa que íamos rápido como o raio!

Atingido o final deste fantástico troço com sucesso, é com alguma surpresa que o André reage ao que lhe digo: “fazes 5.15”. A isso equivale dizer que havíamos feito o melhor tempo no “Promo” e conseguíamos o 8º melhor registo na classificação geral, bem perto “dos grandes”. Era brutal! Sentia-me em êxtase não só pelo conseguido, mas pela experiência de curvar a 190 kms/h e não me perder nas notas (apesar de não ter sido perfeito num ou outro ponto). Estava a viver uma outra realidade, a realidade de correr a um nível que nunca tinha experimentado e a sensação era extraordinária. Menos a sensação de calor, que essa era demasiado intensa! Não sei bem que temperatura tínhamos no interior do carro, mas se cá fora rondava os 38 graus, dentro do Mirage devia andar na casa dos 60 certamente.

foto Duarte Pires - DPMOTORMEDIA

Seguimos então para a classificativa seguinte, também ela muito rápida (não tanto como a anterior) e de um modo geral com o asfalto mais limpo, salvo um ou outro ponto de cortes.

Com o mesmo ritmo adotado para a pec anterior, atacamos os 9740 metros desta classificativa sem cometer erros, sempre naquele ritmo frenético, sempre com pouca margem como o piloto gosta, sempre com travagens no limite e sempre com os picos de adrenalina no máximo (pelo menos para mim, que o André parecia impávido e sereno como se fosse a coisa mais natural do mundo pilotar o Mirage “como um louco” naquelas estradas). O calor intenso (quase abafador) era uma dificuldade acrescida, mas lá ia eu dando conta do recado com mais ou menos dificuldades pois não é fácil entrar no ritmo logo à primeira quando tudo é novidade: piloto, carro, troços. Mas sem dar conta estava cumprida a primeira secção do rali e éramos líderes no Promo.

É quando o André, numa análise mais a frio, vai dando conta que o Mirage está com algumas dificuldades em entregar a potência, provavelmente motivado pelo intenso calor. Ao mesmo tempo é notório que a caixa de velocidades estava a mostrar um comportamento “estranho” com uns ruídos que não vêm de origem com o equipamento e com algumas falhas a segurar as mudanças. Algo de errado se estava a passar e eram sintomas iguais aos sentidos pelo André na prova anterior e que viria a resultar numa caixa de velocidades toda partida.


Entramos no reagrupamento e estes problemas não saíam da cabeça do Cabeças. Obviamente, como bom conhecedor do carro que é, o André percebeu logo que dali não vinha coisa boa e portanto o abandono era a solução mais sensata para não estragar material a sério.

Quase com um sentimento de culpa por termos que abandonar tão cedo, o André lá me ia explicando que o mais certo é que aquilo ia ceder e o estrago era bem maior do que parar de imediato. Como é obvio compreendi e apoiei a decisão. Sei o que implica correr a este nível, tenho noção do investimento que o André tem neste projeto, e claro que primeiro de tudo tem de salvaguardar o material e o orçamento.

foto Paulo Homem - Ralis Online

Estaria a mentir se dissesse que não fiquei algo triste com o abandono porque a experiencia estava a ser para lá de fabulástica. Mas a tristeza pela desistência não era nada comparada com a alegria de ter vivido esta experiência a este nível – André, acredita, foi incrível, foi uma aprendizagem constante desde o primeiro metro de reconhecimentos, e ser pilotado por alguém tão competitivo e que coloca tanto profissionalismo nas corridas como tu o fazes só me fez crescer enquanto navegador. Também ajudou imenso a postura sempre descontraída e sempre divertida que adotas, nunca colocando pressão. Desta maneira as coisas funcionam muito melhor. Obrigado pela oportunidade e pelas sensações de adrenalina em doses industriais que a viagem a bordo da tua bomba me proporcionou. Guias muito! Adorei cada centímetro percorrido!


E foi neste misto de emoções que fiz a viagem de regresso, a recordar com nostalgia os momentos de boa disposição com a malta amiga de sempre, a recordar aquela sensação de velocidade tremenda, a recordar a minha prestação como navegador e a fazer a análise de onde estive bem e onde não estive (aprender é com a prática e com os erros), e sobretudo a tentar assimilar o que é andar num carro ao nível que andamos, perto dos chamados “tubarões” equipados com os todo poderosos carros de fábrica, desafiando umas leis da física que até aqui eram intocáveis, mas que agora percebo ser possível desafiar com grande segurança.

E assim termina a epopeia da escrita, bem longa por sinal, mas vivida a fundo! Voltarei em breve. Só não sei quando nem onde, mas voltarei!

Boas férias para quem está de férias! Bons ralis para quem tiver essa sorte!


7 comentários:

  1. Sente se ao ler esta crónica como foi importante e maravilhosa esta experiência a um nível que já merecias experimentar. Espero que continuem a apostar em ti. Pois mereces estar lá na máxima adrenalina. Vemos nos por aí nos ralis. Abraço

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  2. Se há pessoa que merece, essa pessoa és tu. Muitos parabéns, desculpa mas sinto um orgulho enorme.

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  3. Venham mais histórias destas... um verdadeiro adepto que anda lá dentro!!!

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  4. Do que tenho acompanhado e do que te conheço, sei a dedicação que colocas no teu trabalho para que nada falhe, e por isso já te estás a colocar entre os melhores.
    Venha o próximo "grande", porque tu mereces.
    Grande abraço

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  5. Excelente, e bom de ser ler!!👊😀

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